quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

A tragédia dos 12 mortos em Paris

Como metodistas temos certa afinidade com o Jornal vítima do atentado de radicais islâmicos. O metodista norte-americano Charles Schulz, que viveu 77 anos (entre 1922 e 2000), tornou-se mundialmente conhecido pelas suas tiras do Peanuts, do personagem Charlie Brown, do cachorro Snoopy... Pois bem, sua vida é que inspirou o nome desse jornal francês,“Charlie Hebdo”! 

Stéphane Charbonnier, Georges Wolinski, Jean Cabu... São nomes, são vidas, são pessoas humanas! Estão mortos: chacinados! Também Bernard Verlhac... Phillippe Honoré, Bernard Maris... Tinham história, tinham famílias, tinham gente que os amava e precisava deles! Mortos repentinamente! Como também os policiais franceses Franck Brinsolaro... Ahmed Merabedt... Tragédia ao Jornal Charli Hebdo, em Paris, neste triste 7 de janeiro!

Talvez o mais famoso dentre esses mortos tenha sido o cartunista de origem tunisiana Georges Wolinski, amado e admirado mundialmente! Cartunistas brasileiros o imitavam!

A seguir agressores também foram mortos. Dois de mesmo sobrenome, “Kouachi”, Chérif e provavelmente seu irmão Said! Terroristas ou não, na certa tinham família que os amava. Morte chama a morte! Vingança gera vingança! Agressões... Quando vão ter fim? Já existem notícias na França de granadas sendo jogadas em edifícios muçulmanos!

No mundo inteiro manifestações oficiais de autoridades solidarizaram-se com franceses pelo horrendo massacre. Esta matança não tem explicação! Até quando o ser humano perpetrará atos de ódio, vingança e medo?!

Algumas reflexões se fazem necessárias. Senhor, ajuda-nos!

1.)  Em primeiro lugar... A total ineficácia humana em produzir a justiça. Somos paupérrimos nesta questão. Quando Jesus declara “bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça” (Mateus 5.6), a melhor – talvez única – explicação para isso seja “os que têm fome e sede de Jesus”. Pois justiça humana é fraca, torta, insuficiente, tendenciosa. Ou pior: é “trapo de imundícia”, conforme Isaías 64.6. “Não há quem faça o bem”, pontifica o Rei Davi no Salmo 14.3, declaração esta copiada pelo apóstolo Paulo em Romanos 3.12. Somente Jesus é Justo. Somente na dependência dEle podemos tentar atingir um pouco de justiça.

Quem está certo? Os cartunista do Charli Hebdo ou os terroristas extremos do islã? Resposta: ninguém! Na verdade, nem você... Nem eu... Nós não temos a melhor decisão. Somos pecadores, somos limitados. Nosso juízo é e sempre será tendencioso e “o nosso lado” sempre será o único que tem razão e o outro lado, sempre, o errado...

2.) Sátiras... Formas artísticas pelas quais ridicularizamos situações, pessoas, eventos... Procuram criar efeito cômico apontando falhas ou características alheias... Podem ser em forma de palestra, esquetes, filmes... Ou charges, como foi o caso do Charli Hebdo. Até que ponto temos o direito de satirizar pessoas e organizações? Em nosso Acampamento cunhense, existe forte polêmica desde que, por vários anos, assistíamos a sátiras de pessoas em momentos de descontração. A risada provocada em alguns era também a amargura perpetrada em outros: naqueles que eram alvo da piada. Em geral criou-se um consenso de se evitar fazer sátiras, ou, ao menos, muito cuidado com os melindres que elas provocam. Que tal lembrarmo-nos de Provérbios 26.19? Como o louco que lança fogo, flechas e morte, assim é o homem que engana a seu próximo e diz: Fiz isso por brincadeira.

3.) O Jornal Charli Hebdo satirizava a tudo e a todos. Qualquer religião, qualquer grupo. A irreverência e a pornografia galgaram patamares elevadíssimos. Por exemplo, reproduzir charge da Santíssima Trindade debochando tremendamente de Deus e dando um cunho homossexual nesse desenho.  É direito sadio e irrestrito caçoar de grupos, de ideias, de pessoas? Creio que não. A provocação do jornal francês tem sido muito direta e violenta! Para que debochar tanto? Provocar tanto? Isso sem dúvida nenhuma leva pessoas à ira, à tristeza, a sentimentos negativos. O que dizer de islâmicos que por índole já são violentos e vingativos?!

4.) A morte é radical demais. Foi saudável e positivo utilizá-la como retaliação aos ataques dos cartunistas? Claro que não! Foi um pagamento “à altura” das ofensas recebidas? Provavelmente não. Porém não podemos nos furtar a dizer que “sinais de morte” também caracterizaram as tais charges que colocavam em desenhos ofensas gravíssimas a uma religião que considerava heresia reproduzir qualquer imagem de seu fundador, o Profeta Maomé.

5.) Intolerância religiosa. É sempre ruim a intolerância! Posso não concordar com  católicos romanos, ou testemunhas de Jeová... Mas que direito tenho de caçoar publicamente deles? Meu dever é, antes de tudo, amá-los. Se considero idolatria reproduzir estátuas de algum santo católico, até que ponto pratico a justiça se eu der um pontapé numa dessas estátuas? Ainda mais numa imagem televisionada?

6.) O problema da censura. Copio aqui palavras de religioso francês, publicado no facebook pelo teólogo católico Leonardo Boff. “Um dos significados da palavra ‘censura’ é repreender. ... Quando se decide que você não pode sair simplesmente inventando histórias caluniosas sobre outra pessoa, isso é censura. Quando se diz que determinados discursos fomentam o ódio e por isso devem ser evitados, como o racismo ou a homofobia, isso é censura.” Enfim: há censuras necessárias. Nem toda censura é ruim. 

7.) A vingança é sadia? Jamais! A Bíblia a condena. “Não vos vingueis”, lemos repetidamente no capítulo 12 da Carta aos Romanos, como também, recebemos a mensagem de que somente a Deus (porque somente Ele é justo) compete utilizar a vingança. Existe aquele caso clássico que houve em São Paulo. Com nomes fictícios reproduzo-o aqui. O sr. José assassinou o sr. Antonio, alegando que o sr. Antonio mexeu com sua própria filha. Pois bem. Na hora da morte o sr. Antonio bradava: “Não fui eu! Não fui eu!” mas foi sumariamente morto. Depois do ocorrido, o sr. José descobriu o verdadeiro autor do assédio à filha: realmente não era o sr. Antonio! Ele matou o homem errado!!! Pois bem, isso é vingança. É perpetrar ato muito pior do que a ofensa original... E veja como a coisa piora porque é possível atingir a pessoa errada nessa sede de “ajuste de contas”...

8.) Quem seria salvo se não houvesse um ato Justo, definitivo, eterno, todo-suficiente, realizado pelo “Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo” (Apoc. 13.8)? Deus nos salva das maldades que somos capazes de fazer. Temos erros. Caímos em equívocos. Nem sempre estamos em pé, por isso o verbo “pensar” consta em I Cor. 10.12 “quem pensa estar em pé veja que não caia”... Jesus viu maior virtude no pecador confesso do que no “justo” bonito e educado (Lucas 18.9-14). Islâmicos erraram: criminosos, assassinos! Franceses erraram: não tinham como exercer seu direito inalienável de livre expressão jornalística de maneira menos ofensiva, ou de maneira menos abusiva e provocadora?!

Senhor, tem misericórdia.

Pastor Flávio Moraes de Almeida

Fonte: o autor por e-mail que autoriza a publicação

domingo, 11 de janeiro de 2015

Je ne suis pas Charlie

10/01/2015

Há muita confusão acerca do atentado terrorista em Paris, matando vários cartunistas. Quase só se ouve um lado e não se buscam as raízes mais profundas deste fato condenável mas que exige uma interpretação que englobe seus vários aspectos ocultados pela midia internacional e pela comoção legítima face a um ato criminoso. Mas ele é uma resposta a algo que ofendia milhares de fiéis muçulmanos. Evidentemente não se responde com o assassianto. Mas também não se devem criar as condições psicológicas e políticas que levem a alguns radicais a lançarem mão de meios reprováveis sobre todos os aspectos. Publico aqui um texto de um padre que é teóloogo e historiador e conhece bem a situação da França atual. Ele nos fornece dados que muitos talvez não os conheçam. Suas reflexões nos ajudam a ver a complexidade deste anti-fenômeno com suas aplicações também à situação no Brasil: Lboff     [Leonardo Boff]

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Eu condeno os atentados em Paris, condeno todos os atentados e toda a violência, apesar de muitas vezes xingar e esbravejar no meio de discussões, sou da paz e me esforço para ter auto controle sobre minhas emoções…

Lembro da frase de John Donne: “A morte de cada homem diminui-me, pois faço parte da humanidade; eis porque nunca me pergunto por quem dobram os sinos: é por mim”. Não acho que nenhum dos cartunistas “mereceu” levar um tiro, ninguém o merece, acredito na mudança, na evolução, na conversão. Em momento nenhum, eu quis que os cartunistas da Charlie Hebdo morressem. Mas eu queria que eles evoluíssem, que mudassem… Ainda estou constrangido pelos atentados à verdade, à boa imprensa, à honestidade, que a revista Veja, a Globo e outros veículos da imprensa brasileira promoveram nesta última eleição.

A Charlie Hebdo é uma revista importante na França, fundada em 1970, é mais ou menos o que foi o Pasquim. Isso lá na França. 90% do mundo (eu inclusive) só foi conhecer a Charlie Hebdo em 2006, e já de uma forma bastante negativa: a revista republicou as charges do jornal dinamarquês Jyllands-Posten (identificado como “Liberal-Conservador”, ou seja, a direita europeia). E porque fez isso? Oficialmente, em nome da “Liberdade de Expressão”, mas tem mais…

O editor da revista na época era Philippe Val. O mesmo que escreveu um texto em 2000 chamando os palestinos (sim! O povo todo) de “não-civilizados” (o que gerou críticas da colega de revista Mona Chollet (críticas que foram resolvidas com a demissão sumaria dela). Ele ficou no comando até 2009, quando foi substituído por Stéphane Charbonnier, conhecido só como Charb. Foi sob o comando dele que a revista intensificou suas charges relacionadas ao Islã, ainda mais após o atentado que a revista sofreu em 2011…

A França tem 6,2 milhões de muçulmanos. São, na maioria, imigrantes das ex-colônias francesas. Esses muçulmanos não estão inseridos igualmente na sociedade francesa. A grande maioria é pobre, legada à condição de “cidadão de segunda classe”, vítimas de preconceitos e exclusões. Após os atentados do World Trade Center, a situação piorou.

Alguns chamam os cartunistas mortos de “heróis” ou de os “gigantes do humor politicamente incorreto”, outros muitos os chamam de “mártires da liberdade de expressão”. Vou colocar na conta do momento, da emoção. As charges polêmicas do Charlie Hebdo, como os comentários políticos de colunistas da Veja, são de péssimo gosto, mas isso não está em questão. O fato é que elas são perigosas, criminosas até, por dois motivos.

O primeiro é a intolerância. Na religião muçulmana, há um princípio que diz que o Profeta Maomé não pode ser retratado, de forma alguma. Esse é um preceito central da crença Islâmica, e desrespeitar isso desrespeita todos os muçulmanos. Fazendo um paralelo, é como se um pastor evangélico chutasse a imagem de Nossa Senhora para atacar os católicos…
Qual é o objetivo disso? O próprio Charb falou: “É preciso que o Islã esteja tão banalizado quanto o catolicismo”. “É preciso” porque? Para que?

Note que ele não está falando em atacar alguns indivíduos radicais, alguns pontos específicos da doutrina islâmica, ou o fanatismo religioso. O alvo é o Islã, por si só. Há décadas os culturalistas já falavam da tentativa de impor os valores ocidentais ao mundo todo. Atacar a cultura alheia sempre é um ato imperialista. Na época das primeiras publicações, diversas associações islâmicas se sentiram ofendidas e decidiram processar a revista. Os tribunais franceses, famosos há mais de um século pela xenofobia e intolerância (ver Caso Dreyfus), como o STF no Brasil, que foi parcial nas decisões nas últimas eleições e no julgar com dois pessoas e duas medidas caos de corrupção de políticos do PSDB ou do PT, deram ganho de causa para a revista.

Foi como um incentivo. E a Charlie Hebdo abraçou esse incentivo e intensificou as charges e textos contra o Islã e contra o cristianismo, se tem dúvidas, procure no Google e veja as publicações que eles fazem, não tenho coragem de publicá-las aqui…

Mas existe outro problema, ainda mais grave. A maneira como o jornal retratava os muçulmanos era sempre ofensiva. Os adeptos do Islã sempre estavam caracterizados por suas roupas típicas, e sempre portando armas ou fazendo alusões à violência, com trocadilhos infames com “matar” e “explodir”…). Alguns argumentam que o alvo era somente “os indivíduos radicais”, mas a partir do momento que somente esses indivíduos são mostrados, cria-se uma generalização. Nem sempre existe um signo claro que indique que aquele muçulmano é um desviante, já que na maioria dos casos é só o desviante que aparece. É como se fizéssemos no Brasil uma charge de um negro assaltante e disséssemos que ela não critica/estereotipa os negros, somente aqueles negros que assaltam…

E aí colocamos esse tipo de mensagem na sociedade francesa, com seus 10% de muçulmanos já marginalizados. O poeta satírico francês Jean de Santeul cunhou a frase: “Castigat ridendo mores” (costumes são corrigidos rindo-se deles). A piada tem esse poder. Mas piada são sempre preconceituosas, ela transmite e alimenta o preconceito. Se ela sempre retrata o árabe como terrorista, as pessoas começam a acreditar que todo árabe é terrorista. Se esse árabe terrorista dos quadrinhos se veste exatamente da mesma forma que seu vizinho muçulmano, a relação de identificação-projeção é criada mesmo que inconscientemente. Os quadrinhos, capas e textos da Charlie Hebdo promoviam a Islamofobia. Como toda população marginalizada, os muçulmanos franceses são alvo de ataques de grupos de extrema-direita. Esses ataques matam pessoas. Falar que “Com uma caneta eu não degolo ninguém”, como disse Charb, é hipócrita. Com uma caneta se prega o ódio que mata pessoas…

Uma das defesas comuns ao estilo do Charlie Hebdo é dizer que eles também criticavam católicos e judeus…
Se as outras religiões não reagiram a ofensa, isso é um problema delas. Ninguém é obrigado a ser ofendido calado.
“Mas isso é motivo para matarem os caras!?”. Não. Claro que não. Ninguém em sã consciência apoia os atentados. Os três atiradores representam o que há de pior na humanidade: gente incapaz de dialogar. Mas é fato que o atentado poderia ter sido evitado. Bastava que a justiça tivesse punido a Charlie Hebdo no primeiro excesso, assim como deveria/deve punir a Veja por suas mentiras. Traçasse uma linha dizendo: “Desse ponto vocês não devem passar”.

“Mas isso é censura”, alguém argumentará. E eu direi, sim, é censura. Um dos significados da palavra “Censura” é repreender. A censura já existe. Quando se decide que você não pode sair simplesmente inventando histórias caluniosas sobre outra pessoa, isso é censura. Quando se diz que determinados discursos fomentam o ódio e por isso devem ser evitados, como o racismo ou a homofobia, isso é censura. Ou mesmo situações mais banais: quando dizem que você não pode usar determinado personagem porque ele é propriedade de outra pessoa, isso também é censura. Nem toda censura é ruim…

Deixo claro que não estou defendendo a censura prévia, sempre burra. Não estou dizendo que deveria ter uma lista de palavras/situações que deveriam ser banidas do humor. Estou dizendo que cada caso deveria ser julgado. Excessos devem ser punidos. Não é “Não fale”. É “Fale, mas aguente as consequências”. E é melhor que as consequências venham na forma de processos judiciais do que de balas de fuzis ou bombas.

Voltando à França, hoje temos um país de luto. Porém, alguns urubus são mais espertos do que outros, e já começamos a ver no que o atentado vai dar. Em discurso, Marine Le Pen declarou: “a nação foi atacada, a nossa cultura, o nosso modo de vida. Foi a eles que a guerra foi declarada”. Essa fala mostra exatamente as raízes da islamofobia. Para os setores nacionalistas franceses (de direita, centro ou esquerda), é inadmissível que 10% da população do país não tenha interesse em seguir “o modo de vida francês”. Essa colônia, que não se mistura, que não abandona sua identidade, é extremamente incômoda. Contra isso, todo tipo de medida é tomada. Desde leis que proíbem imigrantes de expressar sua religião até… charges ridicularizando o estilo de vida dos muçulmanos! Muitos chargistas do mundo todo desenharam armas feitas com canetas para homenagear as vítimas. De longe, a homenagem parece válida. Quando chegam as notícias de que locais de culto islâmico na França foram atacados, um deles com granadas!, nessa madrugada, a coisa perde um pouco a beleza. É a resposta ao discurso de Le Pen, que pedia para a França declarar “guerra ao fundamentalismo” (mas que nos ouvidos dos xenófobos ecoa como “guerra aos muçulmanos”, e ela sabe disso).

Por isso tudo, apesar de lamentar e repudiar o ato bárbaro do atentado, eu não sou Charlie. Je ne suis pas Charlie.